sexta-feira, 28 de maio de 2010

"OS TRABALHOS DE JESUS".DE FREI TOMÉ DE JESUS


Dor e Amor em Frei Tomé de Jesus*

"Este buenfraile português, que escribió su obra estando cautivo de los
moros en Marruecos, tenia una fertilísima imaginación para inventar
refinamientos dei padecer. Su libro, todo efusiones líricas y encendidas
jaculatórias, es un largo himno (...) ai dolor.'f

Uma Época na História das Ideias Religiosas
Não entrando propriamente pela problemática do aparecimento das Reformas, nem
por aquilo que a Europa "sentiu" desde finais do séc. XIV e que, em ondas sucessivas, se
veio manifestando em tantas e tantas aflorações do religioso1, preocupam-nos, mais que tudo,
aflorações que resultam de uma sequência (e também das consequências), mais ou menos articuladas,
de males: a guerra (dos Cem Anos 1339-1450, das Duas Rosas 1455-1485,...), as pestes
(entre todas a Peste Negra, por volta de 1348), os mundos cismáticos ou hereges do fim
do mundo medieval reagindo, quantas vezes socio-religiosamente, contra os mundos degradados
da hierarquia eclesiástica aristocratizada2. Afinal, aflorações que se configuram em formas
de resolução da situação do homem face a Deus. E uma atitude religiosa, com resoluções
religiosas, aquela que está por detrás da reforma.
A reforma é, pelos anos de 1500, e segundo Pierre Chaunu, a consensualidade em
torno da necessidade da mudança3. Essa necessidade acaba por se expressar em formas muito
diferentes, tanto que algumas, conduzirão ao pensar diversamente a Escritura e à realidade
da ruptura da Christianitas.
* Este texto constituiu, já em 1985, sob diferente roupagem, das formas e algumas ideias, a Aula apresentada
nas Provas Públicas de passagem de Assistente Estagiário a Assistente, na F.C.S.H. da U.N.L. Foi orientado
pelo Prof.Doutor José Esteves Pereira e arguido pelo Prof. Doutor João Morais Barbosa (1945-1991). Agora,
mercê da revisão cuidada e amiga da Proff Doutora Maria de Lurdes Correia Fernandes é, finalmente, publicado.
Ontem, o Prof. Doutor João Francisco Marques era uma certeza metodológica è de pesquisa, alguém
que eu muito queria conhecer para com ele aprender e trabalhar. Hoje, é o Mestre, que tenho a alegria de
contar entre os meus Amigos. Por tudo isto, e apesar de sentir que lhe devo maior qualidade e saber do
que aqueles que aqui expresso, pareceu-me legítimo rebuscar um tema e texto que já são parte da minha
memória de aprender a fazer História.
1
Para melhor compreensão do que dizemos recuperaremos três dessas aflorações que a
atitude de reforma veio suscitando na Europa do início dos tempos modernos.
A primeira afloração a que dedicaremos a nossa atenção passa pelo aprofundar da realidade
da presença de Cristo na alma e pelo sentir dessa presença. Falamos da mística dos séculos
XIII e XIV. Como escreveu Huizinga, em frase de mestre, "das fases preparatórias do misticismo
intensivo de uns poucos saiu o extensivo misticismo da devotio moderna de muitos."4
"Misticismo intensivo de uns poucos" escreveu Huizinga. O que foi a maneira de afirmar
um traço de extrema importância, o da atitude individualista de reforma que aqui tocamos.
Foram indivíduos isolados, retirados do mundo, que deixaram escritas as suas elaborações
sobre o contacto directo entre Deus e o homem; foram ainda alguns desses indivíduos que
tiveram esse contacto directo. Os nomes dos construtores das ideias religiosas e místicas de
então são, entre todos, Eckart (7-1327), Ruysbroek (1293-1381), Tauler (1300-1361) e Suso
(1295-1366) e, também, Catarina de Siena (1347-1380) e tantos e, sobretudo, tantas outras...5
O que se passou entre eles, o que detectamos nas suas obras como raízes da atitude de
reforma que persistiu nos séculos seguintes? Primeiro, reconhecemos a par e passo um exercício
ascético, metódico e quotidiano, visando um esvaziamento do eu por forma a deixar que aí
a totalidade seja Deus. Depois, um desenvolvimento de crenças e pensamentos em que a interiorização
ganha cor de união entre dois seres: o Criador, ente supremo, o homem, ente inferior.
Fortemente entrelaçada com esta construção mística, mas dela se diferenciando, com mais
largo campo espacial e com raízes bastante diversificadas, a devotio moderna acabará por desenvolver uma atitude pastoral vincada, ou seja, uma procura da difusão de uma vivência cristã, pautada pelos referentes da Sagrada Escritura, detectados e retidos pela Igreja, e uma defesa da vivência ascética desses ideais, o que consequentemente conduziu a uma defesa da interiorização6.
,
Desenvolve-se, assim, um método de aperfeiçoamento e intensificação da vida interior.
Método é palavra chave para a compreensão desta afloração de reforma. Daí que não
seja difícil compreender que as primeiras compilações de textos com vista ao aperfeiçoamento
da vida interior tenham surgido nos meios próximos da devotio moderna. Dessas compilações,
o caminho para a composição de Abecedários, Tratados de oração e Exercitados ou
Exercícios Espirituais foi fácil e aconteceu em continuidade8.
No topo desta actividade encontramos a Imitação de Cristo, obra anónima ou, talvez
terminada, por Thomas Kempis (1379/80-1471). Aí se fixou o ideal da devotio, de tal forma
consolidado e voltado para uma larga absorção que conseguiu ganhar a popularidade que na
época só a Bíblia poderia disputar9. A obra comporta em si os temas essenciais da renúncia
e da afirmação de uma religião interior. Aliás, o título latino, que encima a sua versão mais
divulgada, é o de "Imitatione Christi et contemptu omnium vanitatum mundi" "II s'ouvre -
escreve Francis Rapp - sur 1'apologie du renoncement. II evoque ensuite 1'amitié que Ia pauvreté
permet de nouer avec Jesus. Enfin Ia dernière des quatre parties est consacrée tout entière
à Ia communion qui, lorsqu'elle n'est pas un geste vain mais un acte soigneusement préparé,
renforce Ia présence du Christ dans 1'âme fidèle."10
Estas duas atitudes obrigam a um jogo interior entre uma mortificação (que implica a
dor) e uma aceitação da força do amor de Deus (que implica o amor puro ou perfeito) por
forma a que o indivíduo possa não ser, para que, por amor, o Ser seja, em si11.
Juntemos agora as linhas de força da devotio moderna e de outras espiritualidades,
nomeadamente místicas. Atitudes de interiorização mais ou menos acentuadas, atitudes de
mudança implicando clérigos e leigos, atitudes de aperfeiçoamento pela interiorização, pela
leitura, pela meditação, pela contemplação. Passemos à Península Ibérica do século XVI; aí
encontraremos a terceira afloração que pretendemos analisar; a do recogimiento a que, por
vezes, .
.
Avançamos no tempo, restringimos a área geográfica, constatamos o pensar do religioso
"novo" num período em que a atitude de reforma era já, aqui, atitude de Reforma
Católica. Agora, grupos de leigos, de "beatas"13, em conjunto com alguns religiosos e clérigos,
realizam uma reforma que nem sempre pareceu compadecer-se com essa Reforma Católica.
Em Espanha, em larga escala, em Portugal, por uma importação fácil, os recogidos
ganham posição. Nunca passarão de pequenos grupos, mas terão importância no desenvolvimento
posterior das ideias religiosas que se baseiam em pressupostos de interiorização do divino.
As suas ideias podem enunciar-se com a simplicidade que os seus mentores pretendiam,
com vista, tanto quanto possível, à massificação de atitudes de recolhimento interior ou até de
"misticismo". No ponto de partida está uma defesa e prática de oração mental, que se alia à
confiança na acção de Espírito no interior de cada homem, o que conduz à defesa da comunhão
frequente. Só por estes tópicos podemos compreender quanto interessava mais aos recogidos
o interior dos cristãos que, inevitavelmente, conduziria a toda uma série de mudanças
reformistas, do que uma reforma de cariz institucional, ou de forte cariz moralizante14.
Estender a todos a possibilidade de melhorar, interiorizando, a sua vida de cristãos,
foi a atitude dos recogidos, nalguns casos, através de atitudes de Reforma Católica.
V.Temas y personajes (1570'1630). Madrid: Fundacion Universitária Espanola, 1994. Todos estes e muitos
devem merecer a nossa atenção, apesar de todos os limites das suas fontes informativas. Sem pretender qualquer interpretação ou aportação, gostaríamos de chamar a atenção para algumas linhas que, a seu pro pósito, se cruzam durante os sécs.XVI e XVII ibéricos. A primeira recai sobre a sua dimensão feminina, que é realidade comum e transversal a todo o tema. Uma segunda, sobre os limites por vezes ténues que então se estabelecem entre as diferentes esferas do pensar e do fazer e, sobretudo, entre o laico e o religioso, e entre o ortodoxo e o heterodoxo. Neste sentido, citam-se de seguida, por ordem de publicação, algumas aportações trazidas, ou pelas fixações e estudos críticos de alguns textos ou pelo desenvolvimento de alguns temas, que podem permitir um pôr de questões e interrogações, na esfera das interligações com preensivas. Helmut HATZFELD - Mística femenina clásica en Espana y Francia. Estúdios literários sobre mís
tica espanola.
Um caso: a reforma dos Agostinhos
Foi, contudo, no mundo fechado dos mosteiros e em alguns ambientes conventuais
que a Reforma Católica iniciou o seu caminho. Exactamente, porque se tratava de um mundo
fechado, de um conjunto de pequenas comunidades isoladas, foi fácil, pela acção de alguns,
detentores de postos de autoridade, o que todas as Regras previam, restaurar as comunidades
em desagregação por razões de corrupção. Por detrás está a atitude de reforma que a
Europa respirava e, consequentemente, as aflorações que dela se vinham manifestando15.
Consideremos, dentro desta perspectiva, o mundo monástico português do século
XVI. Melhor ainda, o mundo da reforma de uma ordem monástica, aquela em que viveu e
cresceu espiritualmente Frei Tomé de Jesus: a Ordem dos Eremitas de Santo Agostinho16.
Para isso seguiremos, com ligeiríssimas alterações, as indicações que Silva Dias nos deu no
seu livro..
Depois de graves dissidências internas quanto às eleições para Vigário Geral, nas quais o Rei
D. João III interviu abertamente, a Província acabou por, em 1535, ter nomeados dois reformadores.
Eles vêm de Espanha e são: Frei Francisco de Vilafranca e Frei Luís de Montoya (1497-1569).
A actividade dos reformadores prossegue com mais ou menos intensidade nos anos
seguintes. Montoya dirige o colégio universitário da Ordem, em Coimbra, que serve aos
noviços, Vilafranca restaura o Colégio da Graça, em Lisboa e, a partir dele, os mosteiros da
província.à
Mas os esforços de tantos anos continuavam a encontrar fortes resistências entre
aqueles, da Ordem dos Eremitas, que atacavam a observância que se procurava impor. Ainda
antes da morte de Montoya, por volta de 1565/1566, um frade agostinho, em tantos aspectos
filho espiritual do reformador, tenta recuperar o sentir observante e garantir-lhe uma vida
despreocupada. O seu nome é Frei Tomé de Jesus.
O frade pretendia fundar em Portugal uma recolecção agostiniana, onde se viveria
com intensidade a austeridade a espiritualidade que os observantes vinham tentando impor a
toda a Ordem. O seu biógrafo D. Frei Aleixo de Meneses (1559-1617) escreverá a este respeito,
"foi grande zelador da observância regular, e vida religiosa; e assim vendo que
alguns com desejo de maior perfeição se passaram à Itália a viver em congregações mais
apertadas de Recoletos da Ordem, para consolo destes, e remédio de outros muitos, que
pretendiam o mesmo, determinou fazer uma congregação de Recoletos no Reino de
Portugal, de grande penitência e pobreza"1* Mas estes esforços foram gorados.
Para que assim tivesse acontecido contribuiram duas razões: a má fama de que gozavam
as observâncias italianas e alemãs onde se afirmava existirem fortes infiltrações de ideias
luteranas, que se consolidaram nalgumas passagens de monges agostinhos para o campo da
Reforma Protestante; a própria formação espiritual de Frei Tomé de Jesus, próxima de Frei
Luís de Montoya
Juntemos a estes dois dados a aparição da obra de Frei Luís de Montoya Obras de los
que aman a Dios20, volume que desapareceu quase completamente das bibliotecas portuguesas
o que, possivelmente, aponta para uma actuação da Inquisição. E o facto de o já então
suspeito à Inquisição espanhola, Frei Luís de Léon (1527-1591)21 ser um dos indigitados
membros da recolecção, que Frei Tomé de Jesus propunha e Montoya apadrinhava. Era difícil
que durante a Reforma Católica se aceitasse está confluência, daí que a inicitiva rigorista
da recolecção se tenha gorado.
.
"Os grupos pietistas de Lisboa mantinham contacto entre si e reconheciam geralmente
a Frei Luís de Granada por seu mentor supremo22. Um desses grupos tinha assento no
Colégio da Graça, dos Eremitas Calçados de Santo Agostinho. O seu chefe aparente era Frei
Tomé de Jesus, frequentador assíduo e discípulo aproveitado do célebre dominicano.
Os Colégios da Graça [de Lisboa e de Coimbra] eram escolas de vida austera e de
espiritualidade contemplativa. O da capital distinguia-se mais que qualquer outro nesses dois
pontos. Além de Montoia e de Vilafranca, residiam nele Fr. Ubertino Ennio (7-1559), francês
de nascimento, conhecido por seus êxtases e vida de oração; Fr. Paulo de Barleta (7-1580),
italiano, muito favorecido de Deus; Fr. Agostinho da Graça (7-1593), antigo mestre de
Lovaina e grande amigo da oração, em que diariamente gastava muitas horas. Fr.Valentim da
Luz fora ali mestre de noviços23. Fr. Sebastião Toscano lá tivera também a sua cela. E Fr.
António da Paixão foi um dos seus priores. Eram muitos os que impeliam para fora da ''via
comum", para fora da mediocridade de ideias e de preocupações, a gente daquela casa.
A reforma dos Eremitas de Santo Agostinho foi dirigida por Fr. Luís de Montoia.
O que conhecemos da sua personalidade e actuação, deixa ver que ele era inclinado aos exercícios
de austeridade à rigorosa observância monástica e à meditação afectiva e doutrinal da
vida de Cristo. A obra escrita24 que nos legou confirma essa impressão e põe ainda em relevo
o papel das constelações teológicas agostinianas no seu espírito. Montoia tem, de facto, um
sentido muito agudo da misericórdia divina e do que ela representa na economia da salvação.
Apela constantemente para uma prática afectiva e interior, dominada pela força do
espírito e da comunhão da alma com Deus. As consolações espirituais e a devoção sensível
têm inteiro cabimento dentro do seu sistema, muito embora o principal acento deste esteja
nos valores da fé, da adesão e do amor. Todo o seu ensinamento aponta, com efeito, para uma
piedade interiorista e de puro amor." 25

Um autor e um texto
Biografia

Depois de professar, a sua actividade desenvolve-se, quase sempre, no convento da
Graça, em Lisboa, com algumas estâncias em Penafirme. Foi durante alguns anos deste período
que Frei Luís de Montoya lhe deu o cargo de mestre de noviços na casa lisboeta. Da função
resultou um livro Costumes do noviciado11, do qual se conjectura conhecerem-se apontamentos
posteriores29. Nos apontamentos da Graça, sendo ou não de sua mão, o que se constata
é o enorme peso concedido à oração mental como forma de preparar os noviços30.
A sua actividade na Ordem, depois da tentativa de criação de uma recolecção agostiniana,
é interrompida pela participação na jornada de África e sua prisão em Alcácer Quibir, em 1578.
Ao longo de quatro para cinco anos de cativeiro, de 1578 a data posterior a 27 de
Novembro de 1582, Frei Tomé de Jesus desenvolve larga actividade entre aqueles prisioneiros
que, por falta de meios económicos, não foram resgatados pelas famílias. Aí escreverá os
Trabalhos de Jesus e a Carta à Nação Portuguesa que os precede; esta última leva a data de
oito de Setembro de 1581, que é ainda aquela em que ficaram terminados os Trabalhos,.31
Os Trabalhos de Jesus
.
uma estrutura simples. Inicia-se com a "Dedicatória à Rainha do Céu e da
Terra. A Sempre Virgem Maria Senhora Nossa "33 à qual se segue a "Carta à Nação Portuguesa "34 e
o "Prólogo ao leitor"*5. Traça-se, de seguida, um pequeno, mas importante, excurso inicial,
onde ficam patentes o método e a forma de usar a obra.
Sob o título de "Doutrina dos frutos da consideração dos trabalhos de Jesus "36, figura um
texto geral e uma sequência de "Avisos do modo que se há-de ter para tirar o fruto que se
pretende da lição, e consideração dos trabalhos de Jesus "37. Os Avisos fornecem uma leitura do
texto dos Trabalhos enquanto "exercício", deixando em subtitulação a sinopse dos conteúdos:
"Modo que se há-de ter na hora do exercício, Modo que se há-de ter no exercício do exame quotidiano,
Motivos que podem acender a alma em amor do Senhor atribulado. "38 Terminadas as
apresentações, o texto toma o rumo que o título propõe: a narração dos Trabalhos de Jesus.
Os Trabalhos são em número de cinquenta, mais dois capítulos finais39. Os cinquenta apontamentos
estão divididos em duas partes, os "Trabalhos de Jesus que passou da hora em que foi
concebido, até o dia em que padeceu, resumidos em vinte-e-cinco"A() e os "Trabalhos de Jesus os
quais passou o Senhor no dia da sua sacratíssima paixão.,"41
Por sua vez cada um dos Trabalhos está dividido em duas partes: a primeira, corresponde
à narração do trabalho que Jesus passou; a segunda, a um exercício de reflexão-meditação do
qual aquele, que lê-medita, pode retirar razões e forças, para desenvolvimento da sua vida interior.
No final de cada exercício, que é, também, o final de cada trabalho, existe um parágrafo em
que se pede a intercessão, junto de Deus, à Virgem Maria e à Corte Celestial42.

Quando os Trabalhos de Jesus são escritos e, depois, quando vêem a luz do dia com
a impressão, na Península Ibérica abundam livros pensados e divulgados para melhoria da
vida interior de cada um. Frei Tomé de Jesus sabe-o e afirma-o como um perigo. Logo no
início do seu livro dirá, "e é isto nestes nossos tempos mais perigoso, que nos passados; porque
como temos agora mais coisas destas escritas, anda a linguagem do espírito mais geralmente
sabida e menos exercitada; e muito na língua, e pouco na obra, e experiência."43
Mais à frente, pelo contrário, refere-se-lhes não como perigo, mas como um meio de aperfeiçoamento de religiosos e leigos, escrevendo, umas porque não podem todos ser

O que o leitor necessita é uma disposição para a aprendizagem daquilo que se propõe ao
longo da obra. Não há ali remédios fáceis mas ajudas para a constução da vida interior. Por isso,
entre os que simplesmente querem ler a obra e aqueles que querem exercitá-la, 46 Trabalhos de Jesus, I, p. 47.

"recolhimento em hora certa"47 por forma que possa "ir o espirito mais livre e mover melhor o
afecto "48 para o aperfeiçoamento interior49.
Para chegar a ouvir Deus tem qualquer homem que proceder a uma purificação do seu
interior, purificação que só é possível com um domínio do exterior. É esse trabalho que Frei
Tomé vai ensinar a fazer por meio de um método simples: imitar a Jesus é, primeiro que
tudo, imitar o caminho da cruz, da dor e do amor. O seu método é o da mortificação (dos
sentidos, da mente...) e o da aceitação de que essa mortificação é, já, imitação de Jesus50.
"O remédio geral, e principal que há para não cair nestes perigos, e para sair dos
em que tem caído, é entender muito deveras qual é a substância na vida espiritual, para a
ter por norte e regimento de todos os exercícios. Esta é a mortificação e amor. A mortificação
que não acende o amor de Deus, é suspeitosa: e o amor, que não mortifica, não merece
tão divino nome. Este é o claro e escuro que dá ser e perfeição à vida espiritual" 51
O método proposto assenta numa defesa da direcção interior por parte de um homem
experimentado e "espiritual". Essa direcção passa pela necessidade da confissão do penitente,
que assim se purifica, e pela recepção com frequência da comunhão, numa atitude de participação no divino através do corpo e sangue que a transubstanciação trouxe ao altar52.
Como não podia deixar de ser, a segunda vertente do método é a da oração. Toda a
obra é um incentivo a essa atitude fundamental da interiorização. Ao tratar do "Desamparo
que Cristo teve na cruz", Frei Tomé de Jesus deixou-nos um pequeno resumo do caminho
que a alma atravessa, pela oração, pelo crescer da união com Deus53.
Fica claro que à alma será dada uma "cruz de tentações " e que perderá a "consolação
das criaturas", quer dizer, que será por um espaço de aprendizagem, conseguido por
amor e por entrega, que se atingirá o "perfeitíssimo estado dos perfeitos amadores e servos
de Deus de muitos não entendido "5A. Todas estas dimensões do método proposto, ficam consignadas naquilo que poderíamos chamar a planificação da vida espiritual: "Trabalhe por ter
vida ordenada e ocupada: porque a natureza regrada e ordenada cria menos malícia e
conhece-se melhor e acha o demónio menos entrada para tentar. Entende-se esta regra e
ordem no comer, dormir e em ter hora certa para recolhimento e oração, cada dia costume
de ouvir missa, dias certos para usar dos sacramentos, que devem ser a miúdo para
alimpar a alma, ofício divino, ou orações vocais particulares, devoção particular a Nossa
Senhora e a alguns Santos, a que se encomende cada dia como a advogados seus e peça
seu favor em todas as suas necessidades; e examine cada dia a alma, assim das culpas, como
do aproveitamento e com renovação dos bons propósitos."55

O Homem face a Deus
Face a Deus o homem está como coisa criada face ao seu criador. A dependência é, deve
ser, a da confiança. Uma confiança que é certeza do "poder" e do "querer" de Deus, desde que o
homem saiba "crer" e aceite uma vontade para lá da sua. Não há grande inovação na posição que
Frei Tomé assume. Ela é a que a Escritura propõe e que a prática cristã veio desenvolvendo ao
longo dos séculos. Só se acentuam dois tópicos. Ao "poder" e "querer" de Deus dá-se a força do
amor, que a dor da paixão transmitiu. Ao "crer" do homem assimila-se a dor, que conduz, por imitação
da dor de Jesus, ao amor. A mesma disponibilidade de entrega, mas uma tónica pessoal56.
0 peso dos sentidos e do afectivo
Coloca Frei Tomé de Jesus, em local cimeiro das suas ideias religiosas, o peso do sentir.
Este, é a forma de aprender o caminho e caminhar para Deus. Não admira a sua cuidadosa recomendação.
Logo na descrição do modo de se estar na hora do exercício, se devem deixar libertos
os sentidos para que melhor se sinta Deus, para que se possa "levantar a alma a Deus e
enternecer-se"51. Do mesmo modo, se deve conservar, em seguida ao exercício, o sentir que
Deus comunicou durante a meditação: "Acabada a hora e tempo que tomou para o exercício e
oração, se esteve nele brando e visitado do Senhor, levante-se com suspiros, ou com paz e sossego,
como quem leva a Deus consigo, e com mais recolhimento interior que poder, se vá ao
que há-de fazer, suspirando muitas vezes ao Senhor, ou abraçando-se com tão bom companheiro,
como consigo leva e trabalhe para conservar quanto puder aquela luz, paz e fervor que
lhe foi comunicada e naquele gaste quantos momentos puder, até chegar a outra hora de oração"
5*
Só é possível implicar desta forma os sentidos porque, em todo o seu pensamento,
existe uma noção muito real da humanidade de Cristo. Ele vangloria-se do uDeus homem"59,
esse Deus que ele adora apesar de "vestido de misera carne, e mortalidade."60 E não são simples
afirmações. O Deus que os cravos ferem ou a quem a lança abre o peito é um homem,
um homem que sofre na carne dilacerada, que mostra as entranhas feridas e ensanguentadas61.
Face a esse espectáculo de crueldade real e dor sentida, não pode o fiel ficar indiferente
e deve sentir, sentir com amor62
Cristão que não sente não se situa face à divindade humanada e deve pedir ao seu Deus


que lhe ensine a sentir, a crer afectivamente: "Olha alma, a crueldade com que pegam no
Senhor, e o mandam estender sobre a Cruz, e a mansidão com que a tudo obedece! Como
tomam a medida para os buracos, e o pregam sem nenhuma piedade pelas partes mais sensitivas,
que são os nervos, com duríssimos e grossos cravos de ferro; e se podes, sente a grandeza
daquelas imensas dores; e se o não sabes sentir, deseja-o, e pede-o ao Senhor que to conceda,
porque padeças no coração o que ele com tanto amor padeceu em seu sacratíssimo corpo."63
Crer afectivamente nasce com o sentir da dor e cresce com o amor. Esse crescimento
resulta de uma atitude de repúdio do "sentir" do mundo, de contemptus mundi, de recusa do
exterior e de apelo ao interior, ao fogo do espírito, para que apenas se sinta o calor do amor.
"Ó Deus de meu coração! Ó todo bem da minha alma, ó consolador, ó amparo dos
desamparados, (...) desejo que já que tudo vos falta nesta hora, vos não falte eu com este pobre
espírito, e fraco efrio amor. Abrasai-o vós, meu Deus, para que sinta o que passais e vos ame,
me abrace, e pegue com esta Cruz, para vos ajudar a sentir vossos imensos trabalhos."64
Vamos, mais uma vez, recorrer a Silva Dias para concluir sobre as implicações, ao nível
dos modelos paradigmáticos, mais ou menos intelectualizados e interiorizados, e suas aflorações,
nas práticas quotidianas de devoção. Assim fica escrito, em conclusão inteipretativa e problematizante, nas Correntes do sentimento religioso: "Fr. Tomé reproduz talvez mais fielmente que Granada a ideia-força da escola. O Mestre dominicano, na sua primeira fase, à força de querer recomendar e fazer aceitar as excelências da oração mental, deixou em lugar relativamente
secundário a mortificação. O discípulo segura os dois poios da cadeia, e, esclarecido já pelos
debates doutrinais do terceiro quartel do século e com a experiência dos iluminados à sua frente,
põe a oração e a mortificação em perfeito estado de equilíbrio, mostrando como a vida espiritual
depende delas duas e como ambas se inteipenetram e condicionam mutuamente. (...). Os
Trabalhos de Jesus baseiam-se no método afectivo e não deixam pressentir nem a meditação discursiva, com a sua ordenação e divisão rigorosa da matéria, nem a meditação amorosa e prática, de forma menos sistemática. O seu estilo, arredio das abstracções do Norte, reflecte os processos afectivos de Santo Agostinho e Hugo de Balma, desenvolvidos depois pela escola franciscana.
O movimento do afecto tem mais relevo na sua técnica que a imaginação e o discurso."65
A necessidade do "contemptus mundi1
É preciso repudiar o "sentir" do mundo, é preciso que cada cristão adquira uma atitude
interior, "cerrai meus sentidos e coração ao mundo"66, escreve Frei Tomé. A mortificação fica,
de novo, aqui implicada67 pois é a forma de ultrapassar dois obstáculos, o corpo e o mundo68.
O corpo é carne, forma de sentir material, forma de sentir de acordo com o homem--
animal que a queda inicial restaurou, é um sentir com o Demónio69 Ao corpo deve ser dado o
necessário e não o lícito70 porque o maior inimigo que a alma tem é o corpo, inimigo que
pode mesmo derrotar o espírito71. Cuidar e amar o corpo é ocasião dos maiores pecados entre
os homens e daí que Jesus, desde o seu nascimento, trate o seu com um desprezo que deverá
ser exemplo para todos aqueles que o querem imitar72.
Detestar o mundo torna-se uma necessidade para o avanço espiritual. Frei Tomé sentiu-
o bem. Não fora o abandono da Corte, que a casa paterna lhe proporcionaria com facilidade,
pela cela da Graça e, mais ainda, de Penafirme, e ele nunca teria conseguido uma distanciação
do exterior que lhe esvaziasse o coração dos afectos mundanos. Depois de Alcácer
Quibir não é essa atitude, aliada a uma missão de apostolado, que está por detrás da sua recusa
de aceitação da liberdade preferindo permanecer entre os cativos não resgatados?
O homem que está face a Deus está sozinho, despojado de tudo e todos, é interior e repúdio
do exterior. Vale por si e pelo que deixou ao seu redor73. Na cela, sobretudo na cela do seu
coração, agora vazio pela contínua mortificação do corpo e suas ligações ao mundo, o homem
tem "tempo" para empreender o caminho para Deus pela oração. Na oração, o contemptus
mundi ganha dimensão, transforma-se de simples atitude necessária, numa realidade da vida
interior, uma forma de amor. "É a oração - escreve Frei Tomé de Jesus - coisa que o corpo
pior sofre, e a troco dela tomaria antes açoites. Porque na mental oração, os sentidos, a vaidade
dos seus pensamentos (que é a coisa em que se mais desenfada) e suas inclinações estão
aferrolhadas; e da oração sai a alma com mais cuidado sobre ele, e vigia-se mais dele."74
A linguagem da dor e do amor
Não abundam, na obra de Frei Tomé de Jesus, belas imagens poéticas para expressar
o divino, ou o contacto com o divino, tal como se podem encontrar em Francisco de Osuna,
em Teresa de Ávila ou em João da Cruz. A sua linguagem cuidada literariamente é a linguagem
de um homem sensível e amante daquilo que escreve, cuidadoso no dizer e, sobretudo,
no fazer-se compreender pelos outros75.
A linguagem que a dor e o amor motivaram foi uma linguagem de exclamações, a
69 Trabalhos de Jesus, II, p. 345, II, p. 177.
70 Trabalhos de Jesus, II, p. 173.
71 Trabalhos de Jesus, II, pp. 170-171.
72 Trabalhos de Jesus, I, pp. 138-139.
73 Trabalhos de Jesus, I, pp. 127, 137-138.
74 Trabalhos de Jesus, II, p. 174.
75 "Tomé de Jesus acumula num só livro uma polifonia de vozes e de géneros, de modos, entremeando a narração
com o comentário e este com a meditação, a doutrina breve, a oração e a adoração. E o seu português, sem deixar de ser elegante, escorreito e imaginativo, não atinge nunca os píncaros de outros autores seus contemporâneos", transposição ao escrito de "gritos de alma". Alma enlevada na contemplação da perfeição divina. A essa característica junta-se o realismo da narração dos trabalhos, em que, com uma linguagem capaz de estabelecer conotações sensitivas, o frade agostinho consegue que o leitor participe naquilo que narra.
"Ó, ó, ó amor! Ó, ó, ó amor. (...). Ah! ah! ah! Deus, ah! ah! ah! meu! Ó se aqui
em ti se acabasse o que tu não és! Vive amor, e vive em mim. Viva eu só em ti, ó Deus, ó
amor, ó meu, ó Jesus. (...). Ó quem sempre a essas chagas, e açoites suspirasse, e a elas de
todo o coração se aferrasse! "76
Uma questão de obediência O caminho das observâncias passa por uma defesa da obediência, como forma de virtude e de garantia do cumprimento do estipulado nas regras das Ordens. Não nos deve por isso admirar o peso que Frei Tomé concede ao "obedecer" como estrutura de aperfeiçoamento.
O obediência tem, no seu pensamento, duas dimensões principais. É a obediência que
conduz Jesus a sofrer os trabalhos, as dores, para que o amor possa inundar os homens decaídos.
Obedecer é uma atitude de fidelidade que, em Jesus, dimana da sua união com Deus Pai.
Sendo assim, o sofrimento de Jesus é um sofrimento obediente do Deus-homem, contra o
qual o homem-Deus pode, se não revoltar-se, pelo menos, reagir com "medo". Por isso, na
pena de Frei Tomé, nos aparece escrito: "Todavia sustentava ele sua humanidade com a virtude
de sua divindade, para que chegasse ao cabo com tudo quanto determinava padecer"11
Só que a obediência, porque é fazer a vontade própria ainda que mandada, ganha a dimensão
do amor. Ganha-a na própria dor, aspecto que já tocámos. Mas ganha-a, também, no acto de
vontade que é afirmação de individualidade e da capacidade do homem se assemelhar a Deus.
Por uma acção de amor Jesus padece o determinado, mas porque o quer e por isso
obedecendo, o que torna toda a caminhada, sua e do homem, um acto de obediência78.
"Despia-se, vestia-se, tornava-se a despir, dava as mãos para lhas atarem e desatarem, lançava-
se sobre a Cruz para o pregarem com tanta mansidão e obediência como se foram
mandamentos do Padre Eterno. "79
A obediência ganha uma segunda dimensão na imitação a que obriga os cristãos.
Obedecer ao texto bíblico, ao conjunto dos mandamentos, é obedecer e participar de um acto
de vontade querido por Deus. Se essa obediência ganha a dimensão do espiritual que é, em
Frei Tomé, a da imitação da dor de Cristo com o amor que este sentiu, então, obedecer tornase
acto de entrega, gozo de sofrer e participação real no divino80. Afinal, ao homem, obedecer
não é mais que uma questão de aceitação do seu lugar face a Deus e da possibilidade de
subir nesse lugar até ao Criador.

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